quinta-feira, abril 2

O Grito

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O Grito - Edvard Munch- 1893



Ela tinha conquistado o seu sonho maior : a liberdade... embora nem soubesse muito bem o que fazer com esse tão sonhado premio.

Tinha passando todas as horas, dias , meses , anos, pensando no que faria... sairia dando bom dia , boa tarde , boa noite a todos o que visse pela frente, e foi o que fez. Só que percebeu que as pessoas na sua maioria a olhavam de forma estranha ao fazer isso, como se ela fosse de outro planeta, principalmente porque ela o fazia com muita alegria, com o passar do tempo, foi cada vez menos cumprimentando as pessoas por consequencia sorrindo menos...

Tentou recuperar o tempo perdido tentando fazer novos amigos, batendo papo, jogando conversa fora. Descobriu que a maioria não quer amigos, quer parceiros, sócios, alguém que possa lhe agregar alguma coisa, leia-se alguém que tenha um bom emprego, dinheiro, influencia, acesso na mídia e por ai vai, novamente recolheu-se, desistiu de fazer novos amigos, mas ainda lhe sobrara os velhos amigos... estes sim não a deixariam na mão.

Descobriu que a maioria não tinha tempo , muito menos paciencia para lidar com alguém que tinha passado tanto tempo afastada da vida real. Claro que nem todos lhe deram as costas. uns poucos continuam lhe dando um pouco de atenção, ela só não sabe se por lhe quererem bem, ou se em nome dos velhos tempos, apenas por consideração pela amizade que tiveram um dia.

Sentindo-se vazia, já depois de algum tempo pensou; claro o que falta é um amor, já fazia tanto tempo que não tinha ninguém que até tinha esquecido disso, tinha ficado numa espécie de torpor por anos a fio. E foi a luta, mas descobriu que também nesse campo as pessoas não estão muito interessadas em amores, no máximo paixão, talvez nem isso, mas tão carente de afeto estava que resolveu encarar, e foi o que aconteceu de melhor, pois foi aceita, já que não fez planos, muito menos expectativas, só aproveitou.

No final descobriu que apesar da sua liberdade continua tão sozinha, como no tempo em que estava presa, só mudou a perspectiva de como vê isso. A cada dia que passa percebe que passou tempo demais sozinha, longe do convívio das pessoas ditas normais, em que não se diz o que se pensa de verdade, pois se fizer isso vai ser taxada de fraca, tem-se que colocar uma máscara, uma não várias máscaras: sou forte, bonita, rica...blá, blá...e quem não se fantasia , não coloca a máscara é considerada inadequada e é colocada de lado... como se tivesse fora do padrão de qualidade exigido.

Só que agora ela tem um problema sério; está sendo avaliada: para verem se tem condições de continuar livre.

Quando era privada de liberdade ela sonhava em preencher esse vazio, essa solidão, e isso lhe dava forças para continuar lutando....tanto lutou que conseguiu...ama a sua liberdade embora, não saiba se vai passar no teste, como não se saiu bem em fazer novas amizades, se adequar ao padrão exigido, estão pensando seriamente em revogar seu "passe-livre", pois ao que parece não conseguiu se adequar aos novos tempos, as sutilezas da vida moderna. O que eles não sabem é o quanto ela teme que volte a ficar reclusa, dessa vez uma reclusão definitiva, sem volta, pois deixou de sonhar...



Chico Buarque - Não sonho mais