sexta-feira, fevereiro 27

Crônicas do dia-a-dia

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O valor que uma infância bem vivida representa para a estabilidade emocional do adulto é realmente inestimável. É fundamental par a resolução dos seus conflitos existenciais.
Por isso, a infância é uma temática tão recorrente na literatura. Tanto na Literatura, a arte da palavra, quanto na literatura especializada, digo: Psicologia, Antropologia, Sociologia, etc.

Autores, nacionais e estrangeiros, eternizaram estereótipos baseados nas vivências das crianças que eles um dia foram, ou nos sonhos que alimentaram. Christian Andersen, Saint-Exupéry, Saramago, Graciliano Ramos, são grandes exemplos de escritores que exploraram magistralmente essas imagens, calcadas na observação da criança que cada um foi. E visivelmente tiveram suas obras marcadas pela infância.

Mas a recordação de imagens, às vezes conflitantes, entre a infância e a “envelhecência”, como diria uma amiga nossa, de vez em quando prega-nos peças. As carruagens de nossas lembranças viram abóboras e os castelos desmoronam.

A crônica a seguir relata um desses eventos.


Por Ivan Rodrigues,

A cristaleira da vozinha


Recentemente, numa roda de conversa fora, uma amiga confidenciou-nos a decepção que experimentara ao voltar à sua terra depois de muitos anos. Fora um daqueles momentos em que você, adulto, vê-se em choque com imagens, outrora deslumbrantes, guardadas do tempo de criança.

Num primeiro momento, o caso nos pareceu banal. Mas ao analisarmos com cuidado observamos que se tratava de uma experiência pela qual todos passamos, mais cedo ou mais tarde. Logo, após uma rápida regressão, todos se deram conta de que aquela passagem relatada pela amiga pode acontecer com qualquer ser humano adulto, ao voltar ao cenário de sua infância para se reencontrar com suas memórias. Não sabemos exatamente como a psicologia denomina este episódio nem é nossa intenção tal abordagem, deixemos isto para Freud, apelidamos o evento de “Síndrome da cristaleira da vozinha”.

Contava a amiga que, quando criança, convivia muito com seus tios, primos, e avós, é claro. A infância não teria graça sem eles. Passou, pois, grande parte de sua infância na casa da sua vozinha, onde brincava muito com seus primos. Aliás, segundo suas próprias palavras, o casarão da vozinha foi palco de muitas traquinagens.

E como toda vovó que se preza, essa também tinha os seus guardados, as suas manias, os seus tesouros. “O tesouro da vozinha era uma luxuosa cristaleira que ficava na sala de visitas. Grandiosa, toda em madeira de lei trabalhada e em verniz, irretocável. Vidros jateados, dobradiças e trancas em bronze, uma relíquia. Ali ficavam guardadas suas mais preciosas louças e seus mais finos cristais”. Pelo menos, foi essa a imagem que ficou impregnada na memória da nossa amiga. A cristaleira era uma espécie de símbolo de respeito e obediência para as crianças, era algo como o fruto proibido daquele pequeno paraíso. Tanto que, “se a vozinha pegasse menino malinando por perto, não ia prestar não! Se botasse a mão nos “cristais” então! Aí o sarapatel tava completo!”.

Mas, como é natural, crianças crescem. E a nossa amiga cresceu e mudou para a capital de mala e cuia. Contudo, as imagens e lembranças daqueles tempos gostosos na casa da vozinha sempre a acompanharam, e, é claro, a imagem da imponente cristaleira. Até que, após muitos anos longe daquele universo lúdico, a amiga consegue voltar ao velho casarão para rever parentes e amigos.
“A vozinha, que Deus a tenha num paraíso cheio de cristaleiras porretas e meninos com cara de anjo, não se encontrava mais lá, no entanto, muitas de suas “coisinhas” eram preservadas num quartinho”.

Ao chegar àquela casa, que tantas lembranças lhe trazia, após cumprimentar a todos e distribuir abraços arrochados, e bença à nova geração de “sonhadores”, a primeira coisa que veio à cabeça da nossa amiga foi o desejo de rever a cristaleira. Ao indagar a uma prima pelo tal móvel, esta a levou até os fundos da casa, onde havia um quartinho cheio de bregueços.

A princípio ela não avistou nada que lembrasse, nem de longe, a cristaleira. A prima, vendo-a meio perdida, apontou, “ali, no canto”. Num misto de ceticismo e decepção a amiga ainda questionou “Tem certeza? É isso aí?”. Num canto, jogado, empoeirado, o tal móvel parecia mais um caixote velho com portas de vidro; e os cristais, meros copos de geléia. A decepção foi visível e sua tristeza indisfarçável. Naquele momento quebrava-se todo o encanto de muitas recordações ligadas àquela imagem e há tanto tempo guardadas na memória. “Talvez tivesse sido melhor nunca ter tornado a vê-la”.

Mundo de criança é mesmo um mundo de sonhos e fantasias. A criança o vê sem críticas ou questionamentos; simplesmente o observa e guarda registros que, bons ou ruins, a acompanharão pelo resto da vida. Suas noções de valores e de espaço são isentas de qualquer lógica ou senso crítico, muito diferentes da idéia que um adulto formaria ao deparar-se com a mesma imagem.

O tema “memórias de infância” tem sido muito explorado pela Literatura. José Saramago explora bastante esse embate de imagens diacrônicas do mesmo objeto. Em As pequenas memórias Saramago afirma “A criança que eu fui não viu a passagem tal como o adulto que se tornou seria tentado a imaginá-la desde a sua altura de homem”. Graciliano Ramos, em Infância, também expõe, com toda a fluidez literária que lhe é peculiar, o divergente conteúdo imagético que reside nas visões de mundo do infante e do adulto: “Assim não conservo a lembrança de uma alfaia esquisita, mas a reprodução dela, corroborada por indivíduos que lhe fixaram o conteúdo e a forma”.

É por essas e outras que, de vez em quando, as crianças, num acesso de saber, talvez antevendo esses desencantos, saem com pérolas como esta: “Eu queria ser criança se eu pudesse ser sempre uma criança”. Bom, pelo menos assim, nunca seriam desfeitos os encantos do quintal da mãezinha, da oficina do vovô, nem da cristaleira da vozinha, não é mesmo!